sábado, 19 de dezembro de 2009

Laranja Mecânica









A teoria da distopia não é difícil de se entender. Basicamente, ela prega que o futuro vai ser violento e conturbado, tanto politicamente como no sentido literal. As primeiras imagens que nos vêm à cabeça quando ouvimos falar nessa tal distopia normalmente são governos totalitários, autoridades violentas, alienação, miséria pós-guerra, tecnologia perversa, cenários quase que pós-apocalipticos, e assim por diante. A nada-santíssima trindade da ficção científica distópica é formada por três livros até que bem famosos nos dias de hoje: "1984", de George Orwell; "Admirável Mundo Novo", de Aldous Huxley; e finalmente, "Laranja Mecânica", de Anthony Burgess.


O Laranja Mecânica de Stanley Kubrick se dá numa espécia de distopia artística. Quer dizer que tudo lá é estilizado de um jeito que nos parece bizarro e estravagante, mais do que para quem se deparou com esse universo na época que o filme foi lançado. Mas de qualquer forma, ainda é a mesma distopia criada por Burgess no livro; Uma Londres suja e violenta, populada por gangues-de-rua e regida por um governo fascista. É nesse ambiente hostil que conhecemos Alex e o seu mundo.











Alex DeLarge, o protagonista vivido por Malcolm McDowell, pode ser o protagonista mas não quer dizer que ele seja o mocinho. Nosso herói, vivendo nessa Londres distópica que eu mencionei, gosta de passar o tempo com sua gangue (seus "drugues", como ele os chama) fazendo coisas que você não ia gostar de ver seu filho fazendo. Por exemplo, o filme começa com Alex e os drugues tomando leite batizado com mescalina sintética para depois saírem na rua e espancar um mendigo irlandês a golpes de bengala e corrente. Isso são seus primeiros quinze minutos de filme.


Enfim, Alex é um garoto problemático. Ao longo do filme nós vemos ele assediar mulheres, roubar carros, brigar com outras gangues, invadir casas e outra infrações graves. Porém, isso não quer dizer que ele seja um marginal sujo qualquer. Não, não o nosso Alex. Desde o jeito que ele se veste até o seu amor pela música clássica (sobretudo a de um certo Ludwig Van), Alex DeLarge é um sujeito fino e elegante. Ele é um artista, mesmo que a sua arte sejam casas depredadas e pessoas com os ossos fraturados. Mas no fim, Alex é a vanguarda da marginalidade.


Mas claro, Alex é também um merda. Um belo dia, sua vida de crimes inconsequentes chega ao fim depois que ele, digamos assim, exagera na dose. Estranhamente ele não esperava ser pego nunca, e seu julgamento termina sendo uma surpresa para ele. Alex vai parar numa cadeia, e é aí que o filme toma sua famosa reviravolta. Nosso herói se propõe a ser "curado" através de um novo e misterioso tratamento médico para criminosos perigosos. Já que ele se encaixa tão bem no perfil proposto e não tem mais muito o que perder, ele se inscreve para ser tratado. O pobre e inocente Alex não faz idéia de que esse tratamento é tão ruim quanto qualquer coisa que ele já tenha feito na vida, e as consequências são ainda mais medonhas.












Você pode não gostar do Alex como pessoa, da mesma forma que eu não gosto. Pode querer bater nele com a própria bengala pra ver se ele gosta, da mesma forma que eu quero. Mas por bem ou por mal, Alex DeLarge é um grande personagem, e um desses que fizeram história no cinema. Malcolm McDowell diz que interpretar o sacana foi um verdadeiro desafio, especialmente na hora de fazer com que o personagem fosse tão cativante quanto desprezível. E foi mesmo uma bela performance, que inspirou uma geração inteira de vilões do cinema. Basta citar que foi o personagem que mais inspirou o nosso falecido Heath Ledger no seu papel como o Coringa.


Malcolm McDowell e Kubrick tiveram lá suas desavenças (quando Stan morreu, Malcolm só faltou falar "já vai tarde, o filho da puta"). Mas no final, o nosso diretor foi quem deu a Malcolm todo o apoio que ele precisou, deixando totalmente por conta dele a criação do caráter e da personalidade do Alex do livro de Burgess que apareceria nas telas do cinema. Stan chegou a comentar que se Malcolm não pudesse ou não quizesse interpretar o papel, o filme certamente não teria acontecido.










Laranja Mecânica também chama atenção nos visuais. Como eu mencionei antes, é um futuro estilizado. Aquilo que eu chamdo de "daqui a cinquenta anos, meio século atrás". Kubrick com certeza se superou na hora de criar uma estética própria para o filme, porque em momento algum do livro Burgess mencionou o traje icônico de Alex. Afinal, quem nunca viu essa imagem, de um rapaz de chapéu-coco e cílios postiços no olho direito, vestindo uma roupa branca com suspensórios e carregando uma bengala de gentleman britânico? Dá pra notar que muita coisa no filme foi idéia do próprio Kubrick, principalmente na parte dos visuais.


Vale a pena mencionar o quão difícil foi trazer esse filme pro Brasil na época do lançamento. Caso você não lembre, o regime militar estava em alta, e passar um filme cheio de estupro e agressão nos cinemas estava meio que fora de cogitação. Por outro lado, deixar esse filme fora do circuito dos principais cinemas seria um prejuízo absurdo. Se encontrando nesse impasse, a censura decidiu cortar algumas cenas, mas nas cenas "essencialmente" pornográficas eles iriam censurar apenas os mamilos e vulva da mulher. Para tanto, nossos criativos e habilidosos censores desenhavam um pontinho preto em cima das partes em questão em cada célula do filme. O problema era que de vez em quando a mulher andava e a bolinha preta ficava pra trás, revelando as partes íntimas para a alegria geral do público. É, eu sei, é muito ridículo, mas até o próprio Stan achou graça.


Passaram-se mais de três décadas e o filme ainda rende. Laranja Mecânica ainda é citado como uma obra prima de Stanley Kubrick, um dos filmes mais violentos de Hollywood, o pioneiro da ficção científica satírica no cinema, e uma dezena de outros títulos honrosos. Além disso, a controvérsia que o filme gera hoje em dia é tão grande quanto na época em que ele saiu. Isso é bom. Sinal de que diferente da decoração horrorosa e das fantasias dos drugues, o tema do filme não ficou datado. Afinal, existem muitas semelhanças entre o universo que Burgess imaginou e o mundo no qual eu e você vivemos. Hoje em dia existem milhões de jovens violentos e imorais que nem o Alex, e na maioria dos casos sem uma fração do senso de cavalheirismo dele. A mídia ainda tem o poder de fazer ou desfazer qualquer pessoa sem gerar perguntas, e hoje isso é ainda mais fácil. Os governantes, mesmo sendo outros, ainda não mudaram de idéia quanto a usar pessoas como ferramentas políticas. Há quem diga que a distopia de Burgess apresentada no cinema por Kubrick vem se tornando cada dia mais plausível e mais próxima da realidade. Mas também há quem diga que essa distopia não se trata do nosso futuro, mas sim do nosso presente.

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